"you don't choose the things you believe in, they choose you."

Minority Report (2002)

miércoles, septiembre 19, 2007

três pontos
Cozinha do Inferno

Circulando pelas ruas abarrotadas da orla em um fim de tarde de outono. Um véu escarlate se apossando do firmamento e se estendendo desde as nuvens esparsas até o horizonte. Desfazendo a cortina cinzenta que enfeita o nosso dia e preludiando o rasgar imutável das constelações noturnas. É a noite se abatendo sobre a cidade, deslizando viscosamente pelas paredes de seus edifícios. Tomando o tempo para si, exigindo a existência como sua. Absorvendo a consciência das pessoas, trazendo-lhes ao seu habitat soturno, obscuro, submundo. É toque de recolher das criaturas diurnas, claras e sem graça. É alvorecer das criaturas do escuro, famintas por diversão e frivolidades. Sedentas por aventura e sacanagem. A cidade noturna emerge do ventre de sua mãe clara. Adquire vida própria e se alastra, perseguindo o breu e as pessoas que o levam a qualquer parte. Falando, gritando, sorrindo, gargalhando e gozando. A cidade sente o ecoar dos gemidos da noite, que circulam por suas ruas e becos escuros, se propagando pelo éter negro que se incorpora a todos os seus cantos, por todos os seus poros, por todos os meus poros. A noite me invade, me possui, percorrendo os torpes corredores da minha mente liquefeita. Mesclando-se aos meus sentidos, de forma simbiótica, sintomática. Tornando-me parte de si e me trazendo seus medos, seus anseios. Fazendo meus os seus desejos mais profundos e pervertidos. A noite é imberbe, é jovial. Mas é sedutora, é faceira, sonhadora e matreira. Ela é caprichosa, e transborda sua sensualidade pelas calçadas, emprestando-a a todos os seus filhos incautos, dotando-os de sua sagacidade marota e imbuindo-os de sua inquietude fugaz e fulminante. Ela altera seus hormônios e feromônios como parte de seu plano para perpetuar-se no seio das sociedades. Fazendo dos herdeiros de seus incansáveis seguidores, herdeiros de si mesma. Incontáveis hordas de adoradores nos rituais noturnos de veneração a sua presença magnânima. A noite é ardilosa. Não se dá por vencida e estende seu domínio sobre as almas que se atrevem a penetrá-la. Levando-as, em chamas, a invadir a dimensão diurna sob seu domínio irresistível e turbulento. Ela nos consome, se alimenta de vida, desejo, violência, libido e medo. Aprisiona a nossa essência e liberta os corpos secos para viver o dia em sua ausência. Aguardando o novo chamado crepuscular que vai trazer-nos de volta à plena consciência, novamente aos seus cuidados e sob a sua influência.