Circulando pelas ruas abarrotadas da orla em um fim de tarde de outono. Um véu escarlate se apossando do firmamento e se estendendo desde as nuvens esparsas até o horizonte. Desfazendo a cortina cinzenta que enfeita o nosso dia e preludiando o rasgar imutável das constelações noturnas. É a noite se abatendo sobre a cidade, deslizando viscosamente pelas paredes de seus edifícios. Tomando o tempo para si, exigindo a existência como sua. Absorvendo a consciência das pessoas, trazendo-lhes ao seu habitat soturno, obscuro, submundo. É toque de recolher das criaturas diurnas, claras e sem graça. É alvorecer das criaturas do escuro, famintas por diversão e frivolidades. Sedentas por aventura e sacanagem. A cidade noturna emerge do ventre de sua mãe clara. Adquire vida própria e se alastra, perseguindo o breu e as pessoas que o levam a qualquer parte. Falando, gritando, sorrindo, gargalhando e gozando. A cidade sente o ecoar dos gemidos da noite, que circulam por suas ruas e becos escuros, se propagando pelo éter negro que se incorpora a todos os seus cantos, por todos os seus poros, por todos os meus poros. A noite me invade, me possui, percorrendo os torpes corredores da minha mente liquefeita. Mesclando-se aos meus sentidos, de forma simbiótica, sintomática. Tornando-me parte de si e me trazendo seus medos, seus anseios. Fazendo meus os seus desejos mais profundos e pervertidos. A noite é imberbe, é jovial. Mas é sedutora, é faceira, sonhadora e matreira. Ela é caprichosa, e transborda sua sensualidade pelas calçadas, emprestando-a a todos os seus filhos incautos, dotando-os de sua sagacidade marota e imbuindo-os de sua inquietude fugaz e fulminante. Ela altera seus hormônios e feromônios como parte de seu plano para perpetuar-se no seio das sociedades. Fazendo dos herdeiros de seus incansáveis seguidores, herdeiros de si mesma. Incontáveis hordas de adoradores nos rituais noturnos de veneração a sua presença magnânima. A noite é ardilosa. Não se dá por vencida e estende seu domínio sobre as almas que se atrevem a penetrá-la. Levando-as, em chamas, a invadir a dimensão diurna sob seu domínio irresistível e turbulento. Ela nos consome, se alimenta de vida, desejo, violência, libido e medo. Aprisiona a nossa essência e liberta os corpos secos para viver o dia em sua ausência. Aguardando o novo chamado crepuscular que vai trazer-nos de volta à plena consciência, novamente aos seus cuidados e sob a sua influência.