Sabia que daquela noite não passava. Esperara por tal momento há meses. Queria muito estar ali, entre eles, convivendo e vivendo plenamente. Era a declaração de independência psicológica que tanto aguardava. Disse aos pais que estaria em um grupo de estudos. Que virariam a noite, se necessário, até cumprir todo o conteúdo. Mentiu. Pela primeira vez. Dentro do carro teve ânsia de vômito, mas segurou a onda e não deixou ninguém perceber. Era uma pessoa adulta, madura e dona de si. Não poderia se deixar ver aos vômitos daquela forma. Passado o mal estar, veio a eufórica ansiedade pela noite que lhe aguardava. Apesar de toda a vontade, até então contida, de ser diferente, de ingressar naquele mundo, de se sentir livre de verdade e de sentir-se, enfim, de posse do seu próprio nariz, era impossível não sentir medo em tais circunstâncias. Era impossível libertar-se por completo daquele receio de que tudo desse errado, fatidicamente errado ou até tragicamente errado. O medo de ter suas ações descobertas. Queria sentir-se livre, mas tinha consciência de que não o seria de verdade. Que no fundo, teria de manter a imagem daquele modo de vida regrado, responsável e ainda infantil. Seus 14 anos recém completos não lhe faziam romper a barreira da adolescência diretamente para a condição adulta. Embora assim o acreditasse, no fundo, sabia que não. Dali por diante sua vida seria isso, pura pose. Uma vida dupla e marginal. Fingir para a família que mantinha sua castidade, puerilidade, responsabilidade de criança estudiosa e aplicada, com um belo futuro à vista. E fingir para os seus amigos que se sentia absolutamente à vontade naquele meio, entre aquelas pessoas, em todos aqueles ambientes e situações. Apresentar-se frágil para uns e forte para outros. Mesmo sendo bem pouco do primeiro e quase nada do segundo. Dali para frente passava a guardar em si duas identidades, ambas falsas. Duas vidas de mentira. Durante o dia, esconder as marcas de furos, os brincos, os piercings, as carteiras de cigarro e os odores trazidos consigo da noite. E à noite, esconder os livros, as roupas claras de grife chique e os poucos brinquedos que ainda faziam parte de seu cotidiano. Atravessava ali a fronteira e sabia não poder tomar o caminho de volta. Mas continuou assim mesmo. Morrendo de pavor e enchendo-se de teimosia. Em meio a drinks exóticos e conversas que pouco compreendia, sentiu o frio na barriga quando percebeu que era chegada a hora. O clímax definitivo daquela noite de aventuras perigosas. Dos saquinhos se perfilavam aquelas fileiras brancas e todos começavam a por os pequenos canudos nas narinas e partir rumo a suas torpes viagens. As agulhas ficariam para outro dia. Um passo de cada vez. Ela respirou fundo e foi em frente. Sabendo que daquele dia em diante sua vida jamais seria a mesma. Embora chegasse ali em busca da alforria de sua antiga condição, embarcava numa nova prisão na qual se veria imersa sem desejos de libertar-se. Até hoje...
* Trecho de Espelhos, título provisório de um romance ainda incompleto by Che.