"you don't choose the things you believe in, they choose you."

Minority Report (2002)

viernes, abril 28, 2006

da série
Iranice, uma brasileira
parte I - O País do Futebol

Iranice é uma brasileira. Nasceu pobre e trabalhou muito na vida. Não que isso tenha melhorado muito a sua condição – “vai dando pra se virar”, ela diz. Iranice não confia nos homens. Claro, tem o pai e os dois filhos, mas nos outros não. Na verdade, eu nem sei dizer se ela gosta mesmo dos homens. É meio que uma necessidade sexual, e só. Já viveu com alguns deles, mas sempre lhes impondo a própria independência. Ela é um tanto quanto... digamos... indócil (!?). Enfim... ah, e não pegue no cabelo dela. Nunca. O seu segundo marido a puxou pelos longos cabelos uma vez e ganhou uma cicatriz no rosto. De uma ponta a outra do rosto. Não, não foram unhadas. Foi uma faca mesmo. É, essa é Iranice. Como eu sei disso?! Ela me disse. Não exatamente a mim, mas a algumas amigas. Na verdade algumas transeuntes desconhecidas com quem se protegia da chuva numa parada de ônibus. Eu apenas ouvi. Ouvi enquanto ela lhes narrava a sua história. Em detalhes. Sem o mínimo pudor, vergonha, cuidado ou embaraçamento. Assim, ao ar livre. Pra quem quisesse acompanhar. Ela não confia nos homens, mas não desiste dos seus relacionamentos. Com o seu segundo marido ela viveu por cerca de uns 5 anos. O episódio da facada se deu mais ou menos no meio disso. O resto do tempo em que estiveram juntos ela andava sempre armada. “O meu pai tinha uns contatos e me conseguiu uma”. Você ‘conseguiria’ uma arma pra sua filha se proteger do marido? Pra ela ser processada por tentativa de assassinato? Duas vezes? Sim, a primeira foi a facadas (isso, naquele mesmo fatídico dia), a segunda a tiros. Em público. No meio da rua. Uma senhora morreu nesse dia. Ataque cardíaco, bala perdida, que diferença faz?! Claro, Iranice precisava proteger os seus filhos. Filhos do seu primeiro casamento. Ela é viúva. O primeiro marido morreu. Foi assassinado. Ela mandou matá-lo. Contou isso às ‘amigas’ na parada de ônibus. Sem vergonha, sem medo, sem pudor, sem culpa. E sabe o que é pior? Nenhuma das suas ‘ouvintes’ se mostrou minimamente estarrecida com a sua história. Minimamente constrangida ou incomodada. Se apenas ouvissem já seria hediondo. Mas elas até concordavam. Surreal. Eu nem quero saber o que diabos os seus dois maridos fizeram com ela. Certamente eram tão ‘santos’ quanto a própria. Ou piores. Assim como, certamente, o serão seus filhos quando crescerem. Iranice tem apenas 28 anos. E conta a sua história no meio da rua. Sem pudor, sem remorso, sem constrangimento, sem desculpas. Dizem que os ricos é que nunca são presos nesse país. Iranice não é rica. Nunca foi. Ela continua livre por aí. E não é a única, certamente. Ela é um retrato. Retrato de um país que já não é capaz de se indignar de verdade. Aliás, indignar-se, sim. Que o diga a Suzane Von Richtofen (que o sistema penitenciário a tenha). Mas só quando isso acontece nas altas rodas. Em rede nacional, de preferência. Não com Iranice. Ela não deve ser tão perigosa quanto a Suzane, não aparece na TV, por isso ainda está livre por aí. Sem pudor, nem culpa. Retratando uma sociedade em que adolescentes de classe média se juntam a gangues de lutadores de jiu-jitsu pra parecer sempre mais fortes. Ateiam fogo em índios que dormem na calçada e se safam impunes. Onde jovens desfavorecidos não pensam sequer duas vezes antes de se alistar ao crime organizado. Onde a corrupção já nem mais revolta. Ninguém estranha quando um guarda lhe pede suborno no trânsito e ninguém sabe como ocorrem tantas rebeliões. O único lugar do mundo onde existe a noção diferenciada do que é certo, justo e legal. Quando na verdade tudo deveria ser uma coisa só. Onde o patriotismo ascende forte de 4 em 4 anos e as crianças aprendem desde cedo a venerar uma bandeira que não representa nada além de um time de futebol. Esse é o país em que vivemos. O país de Iranice (não mexa com seus cabelos, por favor...). E a humanidade que nós temos.

miércoles, abril 26, 2006

três pontos
libertas quae sera tamen

quase acredito que as diferenças entre o certo e o errado são assim tão gritantes a ponto de fazer qualquer um perceber o caminho definitivo a ser seguido sem tropeçar entre os trilhos e cair do lado contrário da linha.

quase percebo todas as verdades que se escondem nas confusas passagens por onde trafeguei em vão, em busca de desejos fúteis e inúteis, embora de sabor insuperável

quase desejo mais alguns problemas em meu caminho apenas como uma nova prova de potencial guardado em minhas mãos calejadas de tanto penar para superar os desafios anteriormente lançados sobre meus ombros.

quase alcanço a liberdade do porto seguro definitivo de minha trajetória, mas resvalo no passado e me liberto do presente para sangrar o horizonte tentando prosseguir no processo de ampliar as fronteiras do futuro

o meu futuro imperfeito, mas de traços riscados por mim
de florestas de concreto armado e paisagens cinzentas, mas repletas da mais intensa e fustigante essência viva.

intensidade, profundidade, substância e coragem

quase me mantenho são
quase me mantenho sóbrio
quase me liberto de meus próprios medos para ser livre

na ânsia de deixar de ser um reles quasimodo homem para voltar a ser um ser inteiramente completo. e não mais apenas um quase... quase anfíbio, que se divide entre dois habitats diferentes, mas não se sente parte de nenhum...

nômade entre as cidadelas utópicas de um elo com um mundo perdido
ou quase...

jueves, abril 13, 2006

curtas
Modus Operandi

Sempre teve poucos amigos. Os quais estavam sempre mudando. Suas amizades foram sempre assim, mutantes. Primeiro na família, os primos, depois no bairro onde morava, então na escola, na outra escola, no condomínio pra onde se mudou e, enfim, na universidade. Mas seus atuais amigos, aqueles que reencontrou após anos de afastamento e com quem anda freqüentemente agora, são os mesmos do colégio. Menos um: seu melhor amigo. Este ele conheceu por acaso, nos corredores da universidade, tinham um colega em comum. “e aí!? beleza?” “tudo certo.” “falou.” Foi sempre assim, durante muito tempo. Até que, após longos meses, num dia chuvoso e de mal com a vida. “cara, tenho que te dizer uma coisa.” “diz.” “te acho um grande babaca.” “serio!? coincidência! eu também. nunca fui com a sua cara”. Nunca mais se separaram. Criaram um laço vital, a um e ao outro. Saíam, bebiam, se embriagavam, voltavam pra casa (de um ou de outro) e vomitavam até a última víscera. Chamavam de tia um à mãe do outro. Tornaram-se íntimos. Montaram uma banda de rock. Underground até a última ponta. O baterista era um amigo em comum. Mas quem dava o tom, quem decidia os caminhos, era sempre ele. Sempre foi de difícil convivência, não era muito de ceder, quebravam o pau de vez em quando, mas se suportavam assim. Em nome da música. As brigas davam ibope. Uma vez foram parar na delegacia, saindo de lá direto para o estúdio. Fizeram sucesso. Cantaram na TV. Gravaram CD. Filmaram vídeo-clipe. Chegaram ao topo, ao estrelato. Se drogavam juntos, levaram um ao outro para o hospital um sem número de vezes. Overdoses, comas alcoólicos, induzidos ou não. Viviam intensamente. Até aquele carnaval. Salvador, Bahia. Quando aquela banda, em cima daquele trio elétrico verde limão com amarelo-manga começou a tocar uma música sua. Seu mundo desabou ali. Queria se esconder. Queria sumir. Quando o repórter que fazia a cobertura nacional o encontrou na saída perguntou de pronto. Pensou em bater no repórter, por pouco não o fez. Pensou em rasgar o verbo: “Estou chocado! Isso é uma afronta! Estou horrorizado com isso! É um crime à música de verdade!”, mas uma outra banda já havia tentado algo parecido e não deu muito certo. Preferiu ser polido: “estou realmente surpreso. não esperava por isso. foi uma coisa muito importante para mim. acho que chegou o momento de repensar toda a minha carreira e fazer uma reavaliação. alguma coisa, definitivamente, está muito errada!” É... ser polido não era muito com ele. A carreira foi repensada. Brigas, desavenças, questões a muito varridas para debaixo do tapete eclodindo, vindo à tona. Banda desfeita, cada um seguiu seu rumo. O baterista virou cineasta. Os dois seguiram na música. Tentou ser mais underground. Seu amigo fez sucesso sendo pop. Tentou grunge, punk, pós-punk. As comparações eram afiadas e desconcertantes. Percebeu-se decadente e pensou em desistir. Num ultimo suspiro, optou pela MPB. Reergueu sua vida, sua dignidade, sua carreira. Pelo menos não caiu na tentação de ser 'romântico', desse fosso não se volta. Reencontrou o amigo num desses festivais da vida. Saíram juntos, tomaram um porre, voltaram para o hotel aos vômitos. Rolou uma jam-session no palco do festival e na semana seguinte foram presos: porte de drogas. Não deu em nada, era só um baseado dessa vez, mas deu publicidade. Já começam a pensar em um retorno triunfante: acústico MTV e tudo o mais. A emissora garante que vão encher os bolsos de dinheiro. As cifras já compraram todos os ideais de um jovem rebelde sem causa. Depois desse projeto já planejam outra banda, dessa vez só os dois. Vão tentar algo diferente. Quem sabe um lance mais light, mais soft, mais diet, mais pop. Dinheiro é dinheiro, brother.

viernes, abril 07, 2006

da série
Comédia Romântica

- ai, socorro! vai, vai, vai, vai. assim. não! pára! isso. isso. hmmm... ai, ai... sim! assim assim isso isso isso...
- dá pra fazer silêncio, por favor? tá atrapalhando a minha concentração aqui.
- eu gosto de falar assim. me dá mais ânimo.
- se você precisa tanto se manifestar podia se contentar em ficar gemendo. ou se mexendo, como todo mundo faz. essa sua gritaria me desconcentra.
- eu tô num momento importante. essa parte é mais difícil pra mim. vê se me ajuda e tenta ser mais compreensivo...
- isso que você está fazendo chama-se ‘vídeo-game’ e não ‘coisa importante’. além disso, você não precisa falar pra interagir com o monitor. pra isso existe o teclado.
- e isso que você está lendo chama-se revista em quadrinhos. não precisa de concentração pra entender.
- aí é que você se engana. essas histórias são bastante complexas. você devia ler comigo também. podia ser divertido. não é muito diferente de cinema.
- sei, e é muito educativo também.
- mais do que passar a tarde jogando Zuma, certamente.
- ajuda na coordenação motora e na capacidade de raciocínio e concentração.
- claro. esqueci que você ainda está desenvolvendo a sua parte motora. você só tem 24 anos, né?!
- hmmmmmpft!! também me relaxa, desopila e diverte, tá bom?! e me distrai enquanto você se ocupa dessas revistas aí.
- aahhh!! o problema é esse, então?!
- o quê??
- você tá com ciúmes e querendo atenção.
- não. tô me divertindo e relaxando.
- então eu arrumo outra coisa relaxante pra gente se divertir juntos.
- hmmmmm... o quê? ei!! ai, socorro!! (...)
- ...