"you don't choose the things you believe in, they choose you."

Minority Report (2002)

jueves, agosto 30, 2007

divagar impreciso
Recall

é sangue mesmo, não é mertiolate...

A causa daquela insônia que me atormentou por toda a noite de repente passava a se tornar relevante quando, pela manhã, pude observar o hematoma que se formava ao redor daquela junta dolorida. Era apenas um dedo. Um jogo, uma bola, um lance mal desenvolvido e um dedo idiota latejando de madrugada. Antes de qualquer coisa, auto-medicação. Uma passada na farmácia e tudo resolvido. Afinal, era apenas um dedo. Mas, canhoto, uma entorse mal curada poderia me incomodar, não só na quadra, não só na escrita, mas também no trato com o braço da guitarra. Isso já assusta o bastante. Embora seja apenas um dedo. Uma passada no hospital não me faria mal algum, pensei. Hospital público, porque achei que não valia a pena atravessar toda a cidade de carro apenas por causa de um dedo. Achei errado. A urgência é por ali. Lá vou eu. Vou encaminhá-lo à ortopedia. Lá vou eu. Vá por ali bater um raio-x. Lá vou eu. esperaesperaesperaespera... não fosse um setor de consultórios, na certa seria uma visão dantesca. Como àquelas no fim do corredor ao lado. Cheiro de formol. Pessoas vão, pessoas vêm. Pedaços de pessoas passam ao longe. Muletas e pernas remontadas e apertadas com parafusos. O garoto na cadeira da frente levanta a blusa comprida enquanto a sua mãe conversa com a senhora ao lado. Andando de skate. Braço quebrado e mal cicatrizado. Dá até pra ver o antebraço do guri dobrado ao meio como se ali houvesse uma terceira articulação. E eu me lembro do meu dedo. Outro paciente cruzando o corredor para a radiologia com sua perna pendurada com aqueles espetos encravados. E eu com meu dedo para ser examinado. A moça gorda que mal consegue se mover vem numa cadeira de rodas, na verdade uma ‘cama-de-rodas’, sua perna parece ter sido dobrada ao contrário, tem pinos de uma ponta a outra e alguns pares de anéis ao redor para sustentá-los. Dou graças a Deus por não ter tido uma infância sedentária, o que me rendeu algumas escoriações, mas uma certa resistência. Já penso na tala de gesso que terei de usar durante umas duas semanas e percebo que realmente nada no meu corpo é inútil. As tarefas mais simples se tornarão altamente complicadas sem o dedo anular da mão esquerda. Sobretudo a maioria daquelas que se realiza no banheiro. Mais um galeto espetado passa na minha frente e já começo a pensar no que estou fazendo ali. Eu e meu dedo. Já começo a me sentir como se numa oficina autorizada de peças de reposição. Peças quebradas para serem substituídas como se o corpo humano fosse tão simples de se lidar quanto uma máquina. A senhora com sotaque açoriano irritante repete a história de sua vida para a moça ao seu lado, contando como Dr. Roberval fez isso... Dr. Adalberto disse aquilo... Dr. Claudionor aquilo outro... a simplicidade nem sempre é bela. Os simplistas geralmente não se explicam, mas se entendem. Embora isso não torne a sua simplicidade atrativa. O pai que entra no consultório traz os papeis de internação do garoto que se prepara para cirurgia reparadora do antebraço. Meu dedo já não incomoda tanto. A bem da verdade, não fora uma contusão tão grave. Com o formato de meus dedos, que já não foram feitos para usar aliança, depois dessa luxação ficará ainda mais difícil de aceitá-las. Ótima desculpa. Tenho um amigo eletricista que disse para a esposa que quem trabalha com eletricidade não pode usar nada de metal no corpo. Ela aceitou. Eu já não espero tanta compreensão.