"o senhor da guerra não gosta de crianças"
Uma mãe toca o rosto do seu filho. Acaricia-lhe a testa e tenta, uma vez mais, encontrar uma centelha mínima de vida que ainda lateje dentro de seu corpo inerte, pálido e perfurado por projeteis das armas de fogo empunhadas por aqueles que se dizem servos fiéis de um deus que pede por mortes e violência em troca da salvação de suas almas. Para guardá-las por toda a eternidade aos cuidados de 72 jovens virgens no seu paraíso psicodélico. Seres humanos, de carne e osso, com certeza, cujo espírito há de se duvidar da existência. Movidos pelo amor incondicional a um deus de ódio, que apenas eles acreditam existir. Empunhando suas armas e sua fé contra a vida de seus semelhantes, para obter a glória máxima de poder levantar aos céus suas mãos manchadas de sangue inocente de crianças que não votam em presidentes, que não entendem a balança comercial, que não escolheram um lugar para nascer ou para viver, que não entendem a distinção entre indivíduos da raça humana nascidos negros ou brancos, neste ou naquele continente e não tiveram a oportunidade de escolher um dentre os tantos deuses adorados ao redor do planeta. Crianças que não viverão para ver os seus sonhos nascerem e não terão oportunidade de escolher torná-los ou não realidades. Que não saberão a diferença entre amar e estar apaixonado. Que não conhecerão a sensação do primeiro beijo, do primeiro amor, da primeira decepção, das amizades duradouras, das dificuldades da convivência em sociedade. Que não sentirão a vergonhosa confusão de ver os seus pêlos nascendo, seus desejos surgindo, suas vidas sendo compostas e saciadas. Que não terão uma primeira vez, um primeiro emprego, uma formatura de colégio, uma adolescência, uma vida. Que foram privados do maior presente que Deus já lhes deu. Tomado de volta por covardes terroristas fanáticos em nome de um outro deus qualquer. Se o paraíso que eles buscam realmente existe eu não sei, mas se existir, hoje, certamente, todos os seus anjos vestem negro. Como os anjos que se preparam para receber os seus novos companheiros, nascidos a pouco e já falecidos, nas falanges de um exercito que um dia, terá de lutar uma guerra para, enfim, conhecer a paz. Assim como essa mãe que hoje não vê esperança, futuro ou chão sob os pés. Apenas o corpo gelado e putrefato de seu filho com um buraco de bala nas costas. Desalento, desconsolo e medo. O medo de todas as mães que não querem ter os seus filhos enrolados em sacos plásticos, misturando-se às estatísticas dessa guerra santa sem sentido. Que temem pelos seus filhos, que transitam pelas ruas das grandes e pequenas cidades de todo o mundo. Fortalezas do preconceito, da exclusão, do terror e da crescente desvalorização da vida. Onde os sonhos viram números amargos e frios em folhas de jornais e películas de TV. A essa mãe, não restam mais sonhos, não resta mais esperança, não resta mais vida, não resta mais nada. Ao mundo, resta uma comoção tênue por um pequeno lugar afastado e esquecido, que não se compara a uma grande metrópole com suas torres indo ao chão e levando consigo cifras incontáveis de dólares. A esta pequena cidade de trinta mil habitantes, resta uma marca que nunca será apagada, uma escola em ruínas rodeada por minas terrestres, algumas centenas de corpos a serem velados e um ginásio que guarda as recordações de uma tragédia incompreensível, em suas paredes crivadas de balas e no chão de sua quadra lavado com sangue.
Beslan, Rússia – 03 de setembro de 2004