Ela trabalhou no IML por 17 anos. Desde o fim da faculdade. Deparou-se com todo o tipo de imagens e situações desagradáveis e repugnantes que se possa e que não se possa imaginar. Lembra-se muito bem da sensação de nojo que até hoje não deixou de sentir em alguns dos casos mais repulsivos. E nunca esqueceu das diversas vezes em que vomitou e passou mal diante de alguns dos corpos, imagens e odores com que, aos poucos, se familiarizou ao longo dos anos. Sempre foi consciente do preço que estava pagando por viver aquela vida. A frieza com que era obrigada a enfrentar o dia a dia da sua profissão, por vezes, espantava até a si mesma. Mas ela se preparou muito para aquilo. E já é extremamente preparada para encarar todo o tipo de casos que caem inertes sobre a sua mesa de autópsias dia após dia. Não há mais nada que a assuste. Ela estará sempre pronta para tudo. Menos para aquilo. Ela sabe que deveria ter considerado essa hipótese desde o primeiro dia. Sabe que esse era um dos fatores que deveriam ter pesado na decisão que tomara há 17 anos e que a levou desde a residência no hospital de doenças renais até àquele laboratório policial, àquela sala tomada por gavetas de corpos conservados em formol e àquela mesa. Mas, por algum motivo que desconhece e hoje amaldiçoa enquanto busca não morder os próprios lábios até sangrá-los, essa possibilidade nunca antes fora levantada. Enquanto busca se recompor do horror que vai povoar os seus piores pesadelos por longos e longos meses a seguir desta data e se levantar para encarar novamente, e de forma profissional, o seu trabalho e aquela imagem aterradora. Não seria a primeira vez que se confrontava com tal coisa. Mas nunca antes poderia supor que isso poderia atingi-la com tamanha força. Não recebeu nenhum telefonema. Não fora chamada para tomar nenhum tipo de providencia. Ninguém a procurou para dar-lhe a notícia. Era o dia do seu plantão. Sua hora de folga para um café acabara de se encerrar. Era a sua vez de descer até a garagem para acertar os termos do desembarque. Recebeu o presunto como já fizera com tantos outros. Assinou a papelada e puxou a maca até o setor de conferência. Abriu o zíper do ‘saco’ plástico e fitou a face trágica da morte beijando seus olhos e secando sua garganta. No corpo em cima da maca, agora descoberto, reconheceu a face do seu melhor amigo. E num instante intocável entre os dígitos do relógio tentou de diversas formas assimilar a informação recém adquirida e desfazer as nuvens negras que a impediam de processar o evento e compreender o impensável. Procurou manter o controle, pois sabia não poder entrar em pânico. Mas já estava. Algo que nem em seus desvios de conduta mais intensos permitiu-se imaginar. Nem em seus mais instáveis momentos pessimistas. Entrar em choque e desmaiar era tudo o que mais queria naquele momento. Fugir da irrefutável realidade que descia sobre sua cabeça com força descomunal. De que ninguém chega a sua repartição a bordo daquele carro e enrolado em uma sacola preta se estiver, minimamente, bem. Tentou emergir da angústia que se instalava e pediu para que alguém tomasse os cuidados que se via incapaz de tomar. Voltou à sala e se pôs à frente da mesa por longos e intermináveis minutos. Esperou retomar o controle dos próprios nervos, sentou-se no chão sobre pilhas de jornais velhos e catou o celular dentro da bolsa para ligar para o seu filho. Parou por um instante e buscou palavras que não era capaz de encontrar em seu vasto vocabulário. Respirou fundo e encontrou um mínimo gole de calma em meio ao próprio desespero. Baixou a cabeça e reviu a imagem de um sorriso plácido, uma gargalhada impetuosa, festas, bares, amigos e viagens. Reviu momentos de alegria, cores, capas de LP’s de vinil, um violão, cerveja, taças de vinho e noites de sexo que nunca voltarão a acontecer. Ergueu os olhos e contemplou mais uma vez aquela figura imóvel sobre a mesa que parecia dormir o sono dos mais justos. Perdeu o fôlego por um instante, buscou mais um gole de ar e, enfim, conseguiu chorar.