foi por provocação. você do seu lado da linha e eu aqui, conectados via embratel para discutir e divagar acerca da veracidade dos fatos, da realidade da vida que se molda, da sem-vergonhice masculina e dos nossos erros e acertos. costurando alguns pontos soltos na malha que se desmancha como um véu de noiva em noite de núpcias sedenta de desejo e aterrorizada de medo. foi provocação e nós caímos, ambos, na mesma armadilha preparada, desmontada, remontada e desarmada tantas vezes quantas fossem necessárias até que aprendêssemos a lição. suas palavras, que não se faziam presentes há tempos, a não ser impressas em papel ou compostas por tonalidades bem definidas de verde-azul-vermelho projetadas no tubo de imagem do meu monitor, finalmente podiam ser ouvidas de novo. codificadas, digitalizadas, transformadas em microondas, transmitidas por rotas além da atmosfera e decodificadas em meu celular, elas me abriram, enfim, os olhos para verdades há muito não ditas com tanta veemência e convicção, que por vício e comodismo eu havia jogado num canto subconsciente para que não continuassem a me incomodar. e você, de seu canto, falando e falando e imaginando a minha cara de desgosto ao ouvir aquelas frases sem esboçar a mínima reação, não podia perceber o que se passava deste lado do continente, tão distante, dentro de um apartamento pequeno de mobília rarefeita e sem testemunhas oculares. onde num canto esquecido, entre um móvel e duas paredes adjacentes, meus olhos recém abertos puderam perceber uma presença a mais. de dentro de um casulo pequeno e apertado que se abria diante de mim, um elemento extra se fazia surgir. algo que rapidamente tomou-me toda a atenção relegando você ao incomodo e ensurdecedor ruído de estática. a incerta natureza daquilo que eu acabara de descobrir começou se tornar menos turva e cada vez mais significante. num primeiro ímpeto de tocá-lo fui seguro pelo natural receio do desconhecido, que me levou a jogar uma meia suja apanhada do chão para estudar as reações envolvidas. a curiosidade aumentava à medida que me aproximava do objeto escondido naquele canto inóspito, imóvel como a laje de uma cova. vivo não era, pois não se movia. também morto não parecia, pois o cheiro denunciaria. era algo estranho, não vivo e não morto, sendo então, por exclusão, inanimado. mostrando, portanto, que não se tratava de uma presença, mas sim de uma existência a mais. além de mim. além da sua voz. algo em que, seguramente, eu não deveria por a mão sem antes observar com uma lanterna. prossegui minha aproximação enquanto minhas pupilas se dilatavam para permitir a minha retina perceber as formas existentes no interior daquele vulto que se escondia. o sobressalto me veio ao perceber a real natureza da peça que brotava daquele casulo. aquilo... era eu. um eu não vivo e não morto, nem semi-vivo tampouco. um eu inanimado, nunca antes desperto e que jazia ali, aguardando ser trazido à luz. alguém que não era objeto, mas que também nunca antes foi sujeito. novo, puro, casto. estendi meu braço até alcançar aquela figura por trás do armário pesado e, quando toquei sua face, pude sentir a vida que escoava pelos meus dedos e pernas e cabelos e descia até os pés como água no ralo do chuveiro e me deixava, enquanto a luz que penetrava minhas córneas se apagava como um sopro numa vela. deixei o telefone cair no chão ao desabar do meu corpo sem vida e a célula que me ligava a você via satélite perdeu a conexão. o aparelho foi apanhado por alguém nascido ali, sem testemunhas, sem batismo, sem choro. e o seu telefone permanece gravado como uma chamada ainda a ser completada. até que um dia você receba uma nova ligação deste número, não mais realizada por mim.