"you don't choose the things you believe in, they choose you."

Minority Report (2002)

lunes, mayo 08, 2006

divagar impreciso
noite de domingo

20:54. Eu só queria já estar em casa, em cima do meu quarto e dentro da minha cama, ou quase isso. Vejo no vidro da janela do ônibus um reflexo translúcido do meu rosto enquanto atravesso uma região desconhecida do itinerário que me faz recordar um bairro onde jamais estive da cidade onde nasci e que não visito há tempos. Uma estranha sensação de deja vu às avessas. Os escassos raios de luz artificial emitidos pelos tubos fluorescentes montam uma imagem de aspecto bizarro no lado de dentro da janela ao meu lado. Um rosto pálido e cansado. Cara limpa, cabelos penteados e barba feita. Os olhos fundos e o semblante abatido são as marcas que não podem ser apagadas por um banho. Marcas de dias de profundo desgaste físico e psicológico. Relatos em minha pele de uma vida dupla marginal. Meio séria, meio vagabunda. O ardor nos olhos e as dores nos músculos são os efeitos psicossomáticos dos males profundos que se abatem sobre minha consciência num fim de noite como este. Um ponto final de profundidade numa oração superficial de duas noites e dois dias de prazeres vãos. São momentos assim que levam minha mente a divagar de forma imprecisa e disforme. Formulando sentenças que se iniciam pelo meio buscando sempre um inicio lógico sem nunca chegar ao fim. Sendo freqüentemente interrompidas pela metade. Seja lá onde for a metade de algo que não começa e nem mesmo termina. É sempre em momentos assim que as idéias tomam forma em minha mente liquefeita que se expande em inconsciência para tentar contê-las. Inutilmente. Desço do ônibus e perco a imagem que me acompanhava da janela para passar a interagir com ela. Sinto o bafo gélido que a noite sopra em meu pescoço dolorido ressecar a minha pele e meus lábios já bastante machucados. Sigo colhendo trechos de conversas e fragmentos de memória, reagrupando-os com a ajuda dos agentes inanimados das calçadas semi-desertas da noite úmida e fria para compor frases de filosofia volúvel, edificadas com palavras que se perdem no soprar dos ventos em meus cabelos e no barulho dos carros que cruzam meu caminho para casa. Os versos que construo com precisão milimétrica se desmontam em contato com o ar e se desfazem na brisa sob a penumbra de um poste que teima em piscar de forma quase estroboscópica, atordoando minha visão já comprometida pelo cansaço e pelo sono. Instante em que me reconheço frágil por ser tão dependente de uma máquina estúpida como um computador para guardar em pastilhas de silício e discos magnéticos tudo aquilo que minha imaginação de ciclos incontáveis consegue produzir numa velocidade maior do que minha memória volátil pode armazenar de forma segura. Como a maioria das palavras que organizo de forma poética, dialética, apaixonada ou crônica que nunca são lidas por ninguém, pois se perdem no esquecimento do vão infinito de minha subconsciência. Assim como as frases que desfiro neste exato momento. Abro o portão de ferro. O barulho é tão incômodo que meus ouvidos parecem querer desligar. Meu equilíbrio, já comprometido, sofre um rápido apagão entre os degraus de um dos lances intermináveis de escadas que parecem crescer cada vez mais. O abrir da porta gera um alívio imensurável e indescritível. O turbilhão de emoções desconexas se desfaz diante da visão de cotidiano atordoante que invade minhas retinas. A bagunça na sala assusta, o cheiro no banheiro incomoda, a louça na pia aterroriza pela perspectiva. Os últimos restos de memórias remanescentes dos dias que parecem não querer ir. As roupas jogadas e o cheiro de perfume, feromônio e secreções que toma o quarto já nem são perceptíveis. A cama desfeita há dias como se aguardando pela minha chegada, pronta para me receber de braços abertos. Pego uma revista em quadrinhos e apago sobre ela ainda na quinta página. Segunda-feira pela manhã todas as escalas terão retornado a zero.