Sempre teve poucos amigos. Os quais estavam sempre mudando. Suas amizades foram sempre assim, mutantes. Primeiro na família, os primos, depois no bairro onde morava, então na escola, na outra escola, no condomínio pra onde se mudou e, enfim, na universidade. Mas seus atuais amigos, aqueles que reencontrou após anos de afastamento e com quem anda freqüentemente agora, são os mesmos do colégio. Menos um: seu melhor amigo. Este ele conheceu por acaso, nos corredores da universidade, tinham um colega em comum. “e aí!? beleza?” “tudo certo.” “falou.” Foi sempre assim, durante muito tempo. Até que, após longos meses, num dia chuvoso e de mal com a vida. “cara, tenho que te dizer uma coisa.” “diz.” “te acho um grande babaca.” “serio!? coincidência! eu também. nunca fui com a sua cara”. Nunca mais se separaram. Criaram um laço vital, a um e ao outro. Saíam, bebiam, se embriagavam, voltavam pra casa (de um ou de outro) e vomitavam até a última víscera. Chamavam de tia um à mãe do outro. Tornaram-se íntimos. Montaram uma banda de rock. Underground até a última ponta. O baterista era um amigo em comum. Mas quem dava o tom, quem decidia os caminhos, era sempre ele. Sempre foi de difícil convivência, não era muito de ceder, quebravam o pau de vez em quando, mas se suportavam assim. Em nome da música. As brigas davam ibope. Uma vez foram parar na delegacia, saindo de lá direto para o estúdio. Fizeram sucesso. Cantaram na TV. Gravaram CD. Filmaram vídeo-clipe. Chegaram ao topo, ao estrelato. Se drogavam juntos, levaram um ao outro para o hospital um sem número de vezes. Overdoses, comas alcoólicos, induzidos ou não. Viviam intensamente. Até aquele carnaval. Salvador, Bahia. Quando aquela banda, em cima daquele trio elétrico verde limão com amarelo-manga começou a tocar uma música sua. Seu mundo desabou ali. Queria se esconder. Queria sumir. Quando o repórter que fazia a cobertura nacional o encontrou na saída perguntou de pronto. Pensou em bater no repórter, por pouco não o fez. Pensou em rasgar o verbo: “Estou chocado! Isso é uma afronta! Estou horrorizado com isso! É um crime à música de verdade!”, mas uma outra banda já havia tentado algo parecido e não deu muito certo. Preferiu ser polido: “estou realmente surpreso. não esperava por isso. foi uma coisa muito importante para mim. acho que chegou o momento de repensar toda a minha carreira e fazer uma reavaliação. alguma coisa, definitivamente, está muito errada!” É... ser polido não era muito com ele. A carreira foi repensada. Brigas, desavenças, questões a muito varridas para debaixo do tapete eclodindo, vindo à tona. Banda desfeita, cada um seguiu seu rumo. O baterista virou cineasta. Os dois seguiram na música. Tentou ser mais underground. Seu amigo fez sucesso sendo pop. Tentou grunge, punk, pós-punk. As comparações eram afiadas e desconcertantes. Percebeu-se decadente e pensou em desistir. Num ultimo suspiro, optou pela MPB. Reergueu sua vida, sua dignidade, sua carreira. Pelo menos não caiu na tentação de ser 'romântico', desse fosso não se volta. Reencontrou o amigo num desses festivais da vida. Saíram juntos, tomaram um porre, voltaram para o hotel aos vômitos. Rolou uma jam-session no palco do festival e na semana seguinte foram presos: porte de drogas. Não deu em nada, era só um baseado dessa vez, mas deu publicidade. Já começam a pensar em um retorno triunfante: acústico MTV e tudo o mais. A emissora garante que vão encher os bolsos de dinheiro. As cifras já compraram todos os ideais de um jovem rebelde sem causa. Depois desse projeto já planejam outra banda, dessa vez só os dois. Vão tentar algo diferente. Quem sabe um lance mais light, mais soft, mais diet, mais pop. Dinheiro é dinheiro, brother.
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