"you don't choose the things you believe in, they choose you."

Minority Report (2002)

martes, junio 14, 2005

espelhos
Prisões sem Muros

Sabia que daquela noite não passava. Esperara por tal momento há meses. Queria muito estar ali, entre eles, convivendo e vivendo plenamente. Era a declaração de independência psicológica que tanto aguardava. Disse aos pais que estaria em um grupo de estudos. Que virariam a noite, se necessário, até cumprir todo o conteúdo. Mentiu. Pela primeira vez. Dentro do carro teve ânsia de vômito, mas segurou a onda e não deixou ninguém perceber. Era uma pessoa adulta, madura e dona de si. Não poderia se deixar ver aos vômitos daquela forma. Passado o mal estar, veio a eufórica ansiedade pela noite que lhe aguardava. Apesar de toda a vontade, até então contida, de ser diferente, de ingressar naquele mundo, de se sentir livre de verdade e de sentir-se, enfim, de posse do seu próprio nariz, era impossível não sentir medo em tais circunstâncias. Era impossível libertar-se por completo daquele receio de que tudo desse errado, fatidicamente errado ou até tragicamente errado. O medo de ter suas ações descobertas. Queria sentir-se livre, mas tinha consciência de que não o seria de verdade. Que no fundo, teria de manter a imagem daquele modo de vida regrado, responsável e ainda infantil. Seus 14 anos recém completos não lhe faziam romper a barreira da adolescência diretamente para a condição adulta. Embora assim o acreditasse, no fundo, sabia que não. Dali por diante sua vida seria isso, pura pose. Uma vida dupla e marginal. Fingir para a família que mantinha sua castidade, puerilidade, responsabilidade de criança estudiosa e aplicada, com um belo futuro à vista. E fingir para os seus amigos que se sentia absolutamente à vontade naquele meio, entre aquelas pessoas, em todos aqueles ambientes e situações. Apresentar-se frágil para uns e forte para outros. Mesmo sendo bem pouco do primeiro e quase nada do segundo. Dali para frente passava a guardar em si duas identidades, ambas falsas. Duas vidas de mentira. Durante o dia, esconder as marcas de furos, os brincos, os piercings, as carteiras de cigarro e os odores trazidos consigo da noite. E à noite, esconder os livros, as roupas claras de grife chique e os poucos brinquedos que ainda faziam parte de seu cotidiano. Atravessava ali a fronteira e sabia não poder tomar o caminho de volta. Mas continuou assim mesmo. Morrendo de pavor e enchendo-se de teimosia. Em meio a drinks exóticos e conversas que pouco compreendia, sentiu o frio na barriga quando percebeu que era chegada a hora. O clímax definitivo daquela noite de aventuras perigosas. Dos saquinhos se perfilavam aquelas fileiras brancas e todos começavam a por os pequenos canudos nas narinas e partir rumo a suas torpes viagens. As agulhas ficariam para outro dia. Um passo de cada vez. Ela respirou fundo e foi em frente. Sabendo que daquele dia em diante sua vida jamais seria a mesma. Embora chegasse ali em busca da alforria de sua antiga condição, embarcava numa nova prisão na qual se veria imersa sem desejos de libertar-se. Até hoje...
* Trecho de Espelhos, título provisório de um romance ainda incompleto by Che.